Gilberto Freyre - Portinari 

Dos nomes que o norte-americano associa agora ao Brasil nenhum é maior que o de Portinari. O que ele exprime do Brasil dá para nos garantir uma boa mancha de cor no mapa das culturas regionais de hoje. E quando um povo pode apresentar como seu, teluricamente seu, um Portinari, um Villa-Lobos, um Luiz Jardim, um Cicero Dias, um Camargo Guarnieri ou um Celso Antônio – algum artista de extraordinário poder criador cuja música, pintura ou escultura entre pelos olhos ou pelos ouvidos do estrangeiro ignorante das línguas ou das literaturas exóticas com o viço, o gosto e a cor das terras de onde saíram – esse povo já deixou de ser "simples expressão geográfica" para tornar-se um começo, pelo menos, de afirmação de cultura. Um começo de cultura original e definida nas suas novas combinações de valores.

O brasileiro de hoje não se sente mais, em Nova York ou na Europa, o indivíduo de nação clandestina ou vaga que se sentia nos fins do século passado e nos começos do atual, quando nossas celebridades do dia – Carlos Gomez (com z), Santos Dumont, Antônio Conselheiro, Rio Branco, Nabuco, Vital Brasil, Rui Barbosa – eram indistintamente classificadas "sul-americanas". Agora se faz a distinção. Sabe-se - é claro que por ora só nos meios cultos – que há um Brasil de Portinari e de Villa-Lobos; um Brasil diferente do resto da América chamada latina, um Brasil com seu conjunto de valores humanos e de cultura capazes de se destranharem em compositores e artistas originais e fortes e não passivamente coloniais, corretamente sub-europeus.

Ao norte-americano de cultura acima da suburbana ou da rotariana o Brasil de hoje não faz pensar só em café, nem em touças de bananeira, nem no rio Amazonas, nem em castanhas do Pará, mas no grande pintor que é Portinari, no grande compositor que é Villa-Lobos, em artistas cuja originalidade e cujo viço revertem a favor não simplesmente do Brasil mas do conjunto americano de cultura, para o qual concorremos, dentro dos desejos de Wolt Whitman, com valores tão claros, sólidos e autênticos que qualquer São Thomé da Ásia ou da Europa pode vê-los e apalpa-los. Era desses valores que Randolph Bourne alongando em filosofia as intuições do velho Walt, queria o americano consciente e orgulhoso: cheio "de orgulho cultural". E tão consciente deles que se desembaraçasse do complexo de "humildade cultural" diante de tudo que fosse europeu só pelo fato de ser europeu: poeta, igreja, pensador, estatua, jardim, compositor, pintor, escritor.

Portinari nos dá direito ao orgulho de que falava Bourne. Para os que sofrem, entre nós, do complexo de humildade colonial diante da Europa, Portinari é mesmo uma espécie de valor terapêutico, semelhante ao de certas vitaminas que corrigem deficiências patológicas. Pois o fato de ter o Brasil produzido um pintor da força de Portinari, ilustradores da marca de Luiz Jardim, Santa Rosa, M. Bandeira, compositores da riqueza de imaginação de Villa-Lobos, um escultor do poder de interpretação de Celso Antônio, nos autoriza a acreditar no que já chamei de vigor híbrido sociológico no campo das afirmações concretamente artísticas de culturas para não falarmos das abstratas e intelectuais. São vários os exemplos desse vigor híbrido que nos permite ver na floração artística do Brasil de hoje não a negação, mas a afirmação de vantagens culturais da mestiçagem tal como a que se vem praticando no nosso país desde os tempos coloniais. Mestiçagem, miscigenação, interpenetração de culturas.

Um Portinari menos brasileiro na sua formação, nos seus contatos de menino, teria se contentado em ser no Brasil a simples afirmação colonial do seu nome e de sua tradição de italiano. Um italianinho desgarrado nos trópicos. Um branco perdido entre pardos. O meio brasileiro agiu, porém, sobre o meninozinho ruivo de origem européia com toda a força do seu sol, de suas tradições, de sua democracia de campina de subúrbio onde ruivos e pardos fraternalmente empinam papagaios e jogam football de bola de pano alheios a quanta convenção separa os meninos, em outros países socialmente menos democráticos em brancos e pretos ou em europeus e nativos. Daí a sensibilidade desse pintor louro e de nome italiano ao assuntos mais intima e complexamente brasileiros. Daí ser Portinari tão teluricamente do Brasil como Cícero Dias, quanto Vila-Lobos, quanto Luiz Jardim ou Santa Rosa. Daí um observador arguto, como o poeta Vinícius de Morais ter surpreendido há pouco na Bahia imagens e trechos de paisagem que o fizeram exclamar: "isso é Portinari!"
E na Bahia não há imagens nem trechos de paisagem que não venha das entranhas do Brasil; que não resulte de longos processos de interpenetração de sangue e de culturas por um lado; e de excessos mórbidos de endogamia, por outro.

Com esses processos longos de abrasileiramento se identificou de tal modo Portinari que sua melhor pintura tem gosto baiano: o gosto mais intimo e concentradamente brasileiro que pode ter uma iaia fina, uma mulher do povo, uma paisagem, uma igreja – e não apenas um vatapá ou um carurú.
 

Fonte
Transcrição
O Jornal. Rio de Janeiro, 16 dez. 1942.  

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